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A pesca ao sável

 

O vento soprava forte sobre os salgueirais da margem do Tejo, ali mesmo, junto à foz do Alviela. Uma luz trémula e bruxuliante via-se do lado da aldeia e era a única claridade que se enxergava a léguas de distância. Os olhos se habituaram, apesar do escuro, e não era por ele que a safra não se faria. Os remos faziam "chape, chape" na água e gemiam no desengonçado pau de salgueiro que os prendia ao barco. Ti Vicenta, sentada, com uma enorme barriga, ajudava no que podia e, de quando em vez, gemia baixinho e dizia:
"Ah, home, d'hoje é que não passa!" 
 
O marido, beata ao canto dos queixos e camisa aberta em três botões, músculos retesados na energia do remar, mal a ouvia, e continuava a fazer seguir o barco rio acima para levantar as redes ali colocadas ainda o sol estava alto e a derramar luz forte.
 
Ti Vicenta sentia as dores cada vez mais violentas e a chegarem em demoras cada vez mais curtas. Era um trambolho que estava para ali ao canto da proa, mal aconchegada por não saber bem que posição tomar, para evitar novas contracções. A fala tornava-se quase um gemido:
“Ah, home, qu’eu n’aguento tanta dor!...”
O marido, beata apagada ao canto dos queixos, agora se põe bem naquela lengalenga e mal abre a boca para atirar:
“N’aguentas, n’aguentas, vocês mulheres são uma coisa que nem sei explicar...”
Os remos continuavam o seu gemido e pareciam ser os únicos a entenderem bem os lamentos de Ti Vicenta.
 
Nuvens corriam no céu como loucas e escondiam o que deveria ser uma lua cheia, cheia como a mulher sentada ao canto da proa. Ti Vicenta sentia-se inchada, mas não lhe valia de nada fazer mais queixumes, era de aguentar, pois o marido se calhar até tinha razão. Mas, qual quê, se com os outros três filhos ela se lembrava que tinha sido a modos como agora?...
 
O barco vencia a corrente e aproava junto às marcas que indicavam os locais do lançamento de redes. O pescador vivia sempre aquela sensação antes de saber o que estava por debaixo daquelas águas, que tanto davam para o bem, como para o mal. Daquela puxada de rede estava a sobrevivência por mais uns dias; dava peixe para a família comer e para as mulheres irem vender às aldeias em redor, soprando o búzio e gritando “peixe fresquinho”. De perna bem moldada e saia até ao joelho, era vê-las a calcorrear cabeços e caminhos de posto, chegando até à Póvoa e Milhariças, às vezes mesmo, quando o cliente rareava, arrimavam-se até ao sopé dos Candeeiros ali para as bandas de Alcanede.
 
Às voltas com o pensamento, com sável à farta no saco das redes, novo ai de dor vindo da mulher despertou o pescador Albertino do sonho da safra milagrosa. estava ela outra vez a ganir... mas agora aquilo parecia mais complicado porque não se conseguia calar como anteriormente.
 
No céu vai desaparecendo o negro para deixar ver uma lua cheia a rebentar. Fios de luz trespassam os ares como espadas cintilantes de guerreiros doutros planetas. Pensava o homem que deviam ser rastos de anjos bons, porque o vento amainara e o rio era agora de prata, a reflectir um céu estrelado a fazer cortejo aquela lua tão linda. Um guincho estridente ecoou na noite lançado pelo noitibó. Asas rasgaram o ar ao sentirem gente perto da maracha de salgueiros e choupos hirtos, reis das alturas.
 
Ti Vicenta sentiu um turbilhão na cabeça que mal pode suster direita. Uma dor fortíssima abriu-lhe um grito puxado das entranhas e das entranhas saltou para o fundo do barco o fruto de uma ligação de tantos anos, com o homem que ali estava ao seu lado.
“Ah, mulher, podia eu calcular que chegara a hora!”
E a mulher nem lhe respondeu, tantas eram as dores e tanta era a preocupação em agarrar, ver, sentir, abraçar, ajudar a desenlaçar-se e preparar-se para a vida, mais um filho a aumentar a família.
 
Num instante se rumou para a aldeia. O barco, agora, parecia ter asas. Tudo tão rápido que não para contar com mais pormenores. Ali chegados, as mulheres mais velhas preparavam água quente para lavarem a criança, agora separada da mãe. Experientes, fazendo como sempre o fizeram e viram fazer a pais e avós, tudo se processou num ritual de muitos anos.
Encostado à barraca, beata nos queixos, rodeado pelo irmão e cunhado, Ti Albertino não parava de exclamar :
“Ia um home saber que estava na hora. Mas o nosso rapaz é dos fortes, ai isso é que é!”.
 
Excerto de um conversa com Ti Vicenta, hoje viúva do seu Albertino, avieiros da Barreira da Bica. A Aldeia, situada na confluência do Alviela com o Tejo, na freguesia de Vale de Figueira, está hoje despovoada
 
Arnaldo Vasques, etnógrafo
 
Informação gentilmente cedida pela Região de Turismo do Ribatejo