Conheça o Jogo do Quartão, na Chamusca
“Quer saber o que é o Jogo do Quartão? Então é melhor explicar-lhe agora. É que daqui a nada já está tudo a falar sozinho!” Foi assim o nosso primeiro contacto com esta tradição secular, que acontece todas as Quartas-feiras de cinzas na Chamusca. Um grupo de homens passeia pela vila e vai lançando o cântaro ou o quartão. Pelo caminho vão parando de tasca em tasca, onde lhes é oferecida comida e bebida. A “paródia” começa logo a seguir ao almoço e só termina depois da meia-noite, com o Enterro do Galo.
“Eu tenho 65 anos e sempre me lembro disto. É uma tradição muito antiga.” Francisco Pedro Malaquias Lopes é um dos mais velhos do grupo. Na Quarta-feira de cinzas, quando chega à hora de almoço, vários homens da terra juntam-se para comer grelos com bacalhau. Na altura, conta Francisco Lopes, “bebe-se logo uma pinga boa e depois partimos para a brincadeira”.
Esta tradição acontece de forma espontânea. “Não há nenhuma organização para se fazer isto. A malta aparece. Para nós é um dos melhores dias da quadra carnavalesca.”
Segundo os participantes, o Jogo do Quartão existe há mais um século. No início, quem lançava o cântaro de barro e fazia o enterro do galo eram as mulheres. Essa tradição foi desaparecendo e a partir de determinada altura o jogo passou para os rapazes. Roubavam os cântaros que serviam para ir buscar água à fonte e começavam a jogar. O cântaro era lançado de mão em mão e quem o partisse tinha que pagar uma rodada de vinho tinto aos outros participantes. Hoje em dia, paga-se a rodada ou uma multa. O dinheiro serve para comprar os cântaros para o ano seguinte. “Dantes, como haviam cântaros em todas as casas, as senhoras é que os davam para nós jogarmos. Outras, que não davam, nós entretínhamo-las à porta e outros iam roubar os cântaros para continuar a brincadeira”, conta Francisco Lopes.
“Durante o percurso, vamos parando em casas das pessoas e nas tascas, que nos dão uns petiscos, uns chouriços, farinheiras e a malta vai petiscando e vai roubando um bocadinho de bacalhau. Pelo meio vamos bebendo. Chegamos a um ponto que isto é uma carga de trabalhos. Às vezes até mete assim uma zaragata”.
Antigamente, os quartões eram carregados numa carroça, levada por um burro. Hoje seguem numa carrinha pelas ruas da Vila. “A malta vai partindo o cântaro, vai bebendo, vai partindo, vai bebendo, e quando se chega ao fim já só vai metade da caravana. Alguns não aguentam”. E ali vão todos, de rua em rua a lançar o quartão, interrompendo o trânsito e provocando o sorriso e as buzinadelas dos condutores. Assim se passa a tarde, até à hora do jantar. Pelo meio, os “jogadores” vão assinando e deixando dedicatórias em vários cântaros de barro, que são guardados nas tascas da Vila para recordação.
Depois do jantar começa o baile, que se prolonga pela noite dentro, “mesmo com a malta já pingada”. Trata-se de um baile carnavalesco, onde se faz o Enterro do Galo. “Durante o ano, as piadas e calhandrices que vão havendo aí na Vila é tudo descoberto nesse baile de Carnaval. A partir da meia-noite, mais ou menos, há um padre fictício, há a viúva e depois dali é descoberto tudo o que têm para dizer uns dos outros. Todas as calhandrices, vem tudo à baila”.
O baile decorre nas instalações da União Desportiva da Chamusca. Os participantes mascaram-se e quando o Padre e o Sacristão dizem qualquer coisa, choram todos ao mesmo tempo. Pelo meio, cada participante verseja sobre uma calhandrice da terra. Conta Francisco Lopes que “há muita mulherzinha que vai ao baile de propósito para saber as coscuvilhices cá da Vila”.
Há cerca de 20 anos atrás, esta tradição era mal vista por muita gente. Segundo Francisco Lopes, “dizia-se que quem vinha jogar ao Quartão era a malta dos copos, que era um jogo de bebedeira. Jogar ao Quartão era uma vergonha. Até havia problema com as namoradas. Mas não. É uma tradição muito antiga, que não vai morrer porque já anda aqui muita rapaziada nova.”. Hoje, o Jogo do Quartão continua vivo e a unir gerações. “Até pró ano e que o galo vos acompanhe”.
As Calhandrices do Enterro do Galo
O carnaval está doente
E já não há bailaricos
A música é só tum-tum-tum
Ficamos com a cabeça em fanicos
Foram murros e facadas
Na semana da Ascensão
Coitado do nosso forcado
Caíram-lhe os dentes no chão
Cheques é que tá a dar
Letras e Cartão Visa
Temos do melhor que há
Mas andamos sempre na lisa!
Há cafés por todo o lado
O negócio deve dar
Mas é sempre o mesmo fado
Abrem para depois fechar
E agora vão para casa
Não pensem que falamos de vocês
Porque isso fazemos todos os dias
Semana a semana e mês a mês
Despeço-me com amizade
Deferência e consideração
Pró ano haverá mais
Enterro do galo no União
in "Info Lezíria do Tejo", Revista da Comunidade Intermunicipal da Lezíria do Tejo, de Abril/Maio/Junho 2005
Fotos: CIMLT